Na semana passada, várias empresas de tecnologia anunciaram suas ações e novos recursos para o “Dia Mundial da Conscientização sobre Acessibilidade” nesta quinta-feira (20). O conceito de acessibilidade significa fornecer condições sem barreiras e condições para o uso seguro de sistemas, ferramentas, locais e serviços para pessoas com deficiência (PCD) ou pessoas com necessidades especiais.
De acordo com o Censo 2010 — que deveria ter sido atualizado no ano passado, mas foi adiado por causa da pandemia e deve ser realizado em 2022 —, cerca de 45 milhões de brasileiros (24% da população) possuem deficiência intelectual ou dificuldade nas habilidades de enxergar, ouvir ou se locomover.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE), PCDs são pessoas “que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.
No mundo inteiro, mais de 1 bilhão de pessoas convivem com algum tipo de deficiência, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). Nesse cenário, uma dúvida que fica é: as necessidades dessas pessoas são atendidas pelas tecnologias atuais?
Obstáculos
Marina Batista é responsável pelo site Rodando pela Vida, onde escreve sobre temas como acessibilidade, capacitismo (discriminação e preconceito social contra PCDs), Direitos Humanos, cotas e outros assuntos. Ela é cadeirante e possui tetraparesia, uma doença degenerativa que causa paralisia de nervos e músculos dos membros inferiores e superiores.
A jovem conta que utiliza diariamente equipamentos como smartphones Android e iOS, computador e sistemas de automação domiciliar (via voz). Ela diz que para o mais básico, tudo costuma funcionar. Porém, cada ferramenta tem falhas em particular que dificultam a experiência de uso.
Ela cita que o tamanho dos celulares tem se tornado um problema, já que eles têm ficado mais pesados e muito difíceis de usar para quem tem mobilidade reduzida. Especificamente sobre a Apple, ela elogia o AssistiveTouch, que proporciona uma boa alcançabilidade (recurso para alcançar toda a tela de forma mais fácil). Do outro lado, o iOS ainda impede que fotografias sejam tiradas por comando de voz, por exemplo.
Sobre o concorrente, Marina afirma que é possível tirar fotografias com comando de voz, mas que a alcançabilidade é bastante ruim no Android.
No caso dos notebooks, ela cita que o Teclado Virtual do Windows 10 tem falhas (desde o lançamento) em acentuações de palavras, por exemplo. Além disso, o sistema operacional da Microsoft não possui um leitor ocular, o que poderia facilitar várias tarefas, inclusive digitar.
“Acessibilidade não é apenas tecnologia. É conduta, atitude e forma de pensar. Existem diversos tipos de acessibilidade e o tipo que influencia todos os outros é a chamada ‘Acessibilidade Atitudinal’. Ela vai desde a forma de cumprimentar e acolher a pessoa com deficiência em relações sociais até a adoção do ‘Acessibility Thinking’, que é o entendimento de que esse tema não é apenas sobre pessoas com deficiência, mas também idosos, crianças e bebês, por exemplo”, Batista faz questão de ressaltar.
Adaptações
Lucas Radaelli é engenheiro de software e mora nos Estados Unidos. Ele nasceu sem enxergar com o olho esquerdo e perdeu a visão do olho direito quando tinha quatro anos. O jovem conta que utiliza diariamente laptop e celular e que já tentou usar um smartwatch, mas que decidiu parar porque não achou muita utilidade no dispositivo.
Radaelli afirma que os smartphones já oferecem, hoje em dia, boa usabilidade para deficientes visuais, principalmente por causa dos leitores de tela. No caso dos computadores, ele elogia o NVDA (NonVisual Desktop Access), um programa gratuito que lê o texto da tela.
Mesmo assim, nem tudo são flores. O engenheiro de software afirma que a falta de consciência de alguns desenvolvedores acaba dificultando a experiência do usuário. “Nem sempre eles pensam na acessibilidade na hora de construírem as páginas ou apps. As ferramentas funcionam bem, o ecossistema que temos que usar nem sempre”.
Lucas Radaelli ajoelhado com o braço esquerdo abraçando Timmy, seu cão-guia
Trabalhando com tecnologia há muito tempo, Radaelli defende que a melhora na acessibilidade é bastante perceptível. Do outro lado, ele diz que a pressa em lançar aplicações e produtos acaba fazendo com que eles precisem receber melhorias posteriormente.
“Um exemplo recente foi o Clubhouse. No começo, o aplicativo era bem pouco acessível aos leitores de tela. Em poucas atualizações melhorou muito, o que foi algo positivo. Mas teria sido muito melhor se tivesse sido feito acessível desde o começo”, finaliza.
A nova rede social que bombou no começo de 2021 sofreu muitas críticas justamente por causa da falta de acessibilidade. Por só aceitar áudio, ela exclui deficientes auditivos, por exemplo. Para contornar o problema, os donos do Clubhouse já anunciaram recursos inclusivos como textos de localização e suporte a mais línguas.
Inclusão
Gabriel Machado, mais conhecido na internet como “Machadinho”, é streamer e joga títulos como Rainbow Six Siege e Valorant. Ele possui amiotrofia espinhal, uma patologia genética que é degenerativa e causa atrofia muscular.
O gamer conta que utiliza uma gama de ferramentas para aproveitar a tecnologia da melhor forma. O celular, um Samsung Galaxy S20, fica em um suporte, enquanto o menu assistente do Android e os recursos de desbloqueio facial o ajudam a realizar suas tarefas diárias.
“No computador eu uso teclado virtual e sistema de voz. Mais para frente eu pretendo automatizar mais o meu quarto com a Alexa, para deixar mais fácil para mim. Essas ferramentas suprem minhas necessidades e me dão bastante independência. Só para carregar as coisas de um lado para o outro que eu tenho um pouco de trabalho, na verdade”.
Machadinho ressalta, porém, que a situação para quem não tem tanta condição financeira é bem mais complexa. Ele lembra que o dólar alto atrapalha bastante quem gosta ou simplesmente precisa consumir produtos eletrônicos, já que grande parte deles são exportados ou possuem peças vindas de fora do país. “Mas é engraçado porque o PCD se vira nos 30 e acaba se adaptando da forma que dá”, brinca.
Sobre os games, ele cita Rainbow Six Siege como um ótimo exemplo de acessibilidade. O streamer explica que qualquer movimento no jogo pode ser modificado. “No modo padrão o jogador precisa pressionar um botão toda vez que quiser mirar, mas esse movimento repetitivo é difícil para quem é PCD. Então eles dão a opção de ‘travar’ o comando para evitar que toda hora o botão seja apertado. Isso é muito bom para a gente”.
Por outro lado, ele afirma que o problemático Cyberpunk 2077 não é tão acessível. O título não tem esse sistema de alternação dos controles e deixou a jogatina de Machadinho um pouco complicada durante as lives que ele fez. De maneira geral, o jogador enxerga de maneira positiva a inserção de PCDs no cenário gamer.
“Eu fico feliz de ver essa integração e esse destaque que estamos ganhando no cenário. As pessoas não têm ideia de como essa visibilidade é importante para a gente. E eu enxergo o videogame como uma plataforma para todo mundo”, finaliza.
Respeito
Renan “RMK” Miotta também é streamer na Twitch e joga principalmente Counter-Strike: Global Offensive, o popular CS: GO. Ele tem distrofia muscular, uma doença que paralisa os movimentos do corpo. Ele conta que descobriu sua condição há alguns anos e que chegou a ficar muito tempo fechado em seu quarto, já que sofreu muito com a situação. A tecnologia, em particular os games, lhe trouxe uma nova perspectiva de vida.
“A tecnologia transforma a vida do PCD porque ela te coloca em contato com o mundo. Os jogos me trouxeram uma nova identidade, já que atrás da tela eu era igual a qualquer outra pessoa. Isso contribuiu muito com a minha autoestima”.
RMK faz parte do Fallen e Amigos, um projeto que procura incluir PCDs no mundo dos esports e é organizado por Gabriel “FalleN” Toledo, um dos principais atletas de esportes eletrônicos do mundo.
Ele defende que iniciativas de inclusão são essenciais e que há uma clara evolução sobre o assunto. Contudo, ele reforça que há ainda um longo caminho a ser traçado. O streamer lembra que cada pessoa com deficiência encara dificuldades particulares no dia a dia e que por causa disso o tema precisa ser tratado com seriedade.
“Muitas vezes, empresas utilizam a questão ou o nome dos PCDs como marketing, só para aparecer que estão apoiando a causa. O tema inclusão é um negócio bastante sério para a gente e não pode ser usado somente como teatro na internet. Às vezes, existem iniciativas que parecem que estão fazendo um favor para a gente, e não é o caso. O PCD não quer ter sua imagem usada para depois ser descartado”, desabafa.
Via: TecMundo